Heitor
Sentado em um café às margens do Sena fumando um cigarro, Heitor não conseguia impedir que reminiscências tomassem sua mente. Diante da grande tarefa que tinha diante de si, o Lasombra revisitava o caminho que ali lhe trouxera em busca de inspiração.
Se recorda primeiro de seus distantes dias de vida, quase apagados pelas névoas do tempo: sua juventude passada pelos portos de Tessalônica, aprendendo o ofício de marinheiro; já mais crescido, após viajar por todo o mar Mediterrâneo e o Mar Negro, já como imediato do navio; e por fim as invasões dos Turcos Otomanos e a queda de Constantinopla, que enfim mudaram sua sorte.
Com a mudança nas posições de poder Heitor conseguiu que o capitão de seu navio, membro de uma proeminente família Bizantina de Tessalônica, encontrasse a morte nas mãos dos conquistadores e assumiu o comando do mesmo. Em 10 anos, o jovem sem linhagem era dono de uma vasta frota de navios e era responsável por transportar os mais finos produtos para a nova elite da cidade.
Sua rápida ascensão e seus vastos contatos na cidade atraíram a atenção de uma enigmática mulher Turca chamada Aytaç. Sem conseguir precisar bem em que momento aconteceu ou mesmo o porquê, uma vez que já estava acostumado com a companhia das mais belas mulheres da cidade, Heitor se viu fazendo de tudo por Aytaç, tentando provar seu valor de qualquer forma – naquele momento no café ele sabia claramente se tratar da influência da Presença – indo a distâncias maiores do que antes fora, colocando seus navios em grandes tempestades para colher uma simples flor. Mas ele foi capaz de mostrar a ela quem era, e sua corte enfim lhe rendeu o maior prêmio que poderia esperar – a não-vida entre as sombras.
Tendo sido abraçado antes mesmo de Gratiano, o jovem Lasombra acompanhou de perto a velha estrutura do clã sob o domínio do Castel d’Ombro. Aytaç o ensinou em todas as formalidades do clã e acompanhou a criança da noite por diversos anos antes de deixá-lo trilhar mais uma vez seu caminho entre as ondas sem supervisão, quase meio século após se juntar aos seres da noite.
As memórias do célebre ataque de Gratiano, da Inquisição e da Revolta Anárquica eram muito mais recentes e significativas para Heitor. A proposta de uma liberdade nunca antes oferecida aos filhos de Caim, de romper as amarras dos anciãos e determinar seu próprio futuro reverberaram no âmago daquele homem que chamava ao mar de sua casa. O fato de sua senhora encontrar a morte final pelas mãos dos Rebeldes lhe trazia ainda mais a certeza de que era aquele seu destino, tornar-se um membro exemplar da nova Seita que se formava e se tornar protagonista de sua própria existência.
Heitor abraçou os ideais de liberdade e autonomia da seita de forma radical, logo se tornando um exemplo entre seus rivais, tanto do clã das sombras quanto dos demais. No entanto, seu desejo de não se fixar em nenhum lugar, levando seu navio por territórios conhecidos e desconhecidos impediu que crescesse politicamente dentro do clã. Em uma das oportunidades em que se encontrou com o Arcebispo de Madrid, Monçada, porém, seu anfitrião percebeu seu grande potencial: sua firmeza e criticidade fariam dele um grande inquisitor, expurgando do Sabbat aqueles que não eram dignos de seus ideias.
Durante quase 300 anos ele e sua tripulação percorreram a Europa, Ásia e África, eliminando todos os sinais de corrupção das fileiras do Sabbat, preparando a espada para que possa lutar contra a segunda geração e seus servos. Agora ele estava sozinho na capital francesa, a convite do Arcebispo de Madrid, buscando encravar no centro da Europa mais uma domínio da Espada de Caim. Ele levanta, joga ao chão o cigarro que tragava e o apaga sob sua sola. Não havia mais tempo para o passado, havia de começar naquele exato momento o seu futuro.